O júri do ano. Até quem não queria saber sobre o assunto foi tomado por uma avalanche diária de informação, que transformou o emblemático caso da morte da menina Isabella Nardoni, em folhetim romanceado. Para o promotor do caso, Francisco Cembranelli, o caso será lembrado, daqui a 100 anos nos livros de história, como o de “maior repercussão da história jurídica”.
Em seu 20º ano de atuação na promotoria do júri, Cembranelli recebeu o processo de um crime “singular” e “misterioso”. O pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, teriam agredido Isabella e depois jogado a filha pela janela do 6º andar do edifício em que moravam, no dia 29 de março de 2008.
“O caso trazia uma série de ingredientes que chamavam a atenção das pessoas. A maneira como aconteceu, as personagens; havia ali uma questão amorosa envolvida, eram duas Anas, havia uma pessoa que foi casado com uma [Nardoni com a mãe de Isabella, Ana Carolina de Oliveira], acabou se separando, aí tentou reconstruir a vida; uma filha no meio de todas essas pessoas...”, lembrou o promotor.
Sem a confissão por parte dos acusados, a ansiedade por uma resolução para o crime que chocou o Brasil fez com que a população acompanhasse o trabalho da imprensa, que exaustivamente divulgava “cada perícia, cada depoimento, cada manifestação”, observou Cembranelli. “Ficou um suspense, as pessoas acompanhado como se fosse uma novela e os capítulos eram divulgados a cada dia”.
Somente dois anos depois, ao final de um júri popular que durou cinco dias e com uma plateia bastante concorrida, o resultado que condenou os Nardoni seria “comemorado” plela população – com direito a, inclusive, fogos de artifício e o tema da vitória de Ayrton Senna.
Cembranelli considera um erro creditar a condenação dos réus a uma "pressão imposta pela mídia"
A comoção popular, no entanto, em nada influenciou seu trabalho, segundo o promotor. Para ele, “a defesa, em vários momentos do processo, teve muito mais espaço que a acusação”. Segundo Cembranelli, o resultado seria o mesmo se a cobertura da mídia tivesse sido diferente. “A mídia não cria provas. Seria muito simplório e bastante limitado dizer que o jurado, que acompanhou com atenção os cinco dias de julgamento, já chegou com voto pronto porque a mídia fez pressão”, ressaltou.
Orgulhoso do trabalho realizado, Cembranelli não esconde a satisfação em deixar um “legado” com a resolução do caso. Além de melhorias estruturais, em termos de equipamentos tecnológicos mais avançados para a perícia da Polícia Científica, o promotor acredita que deixou um “bom exemplo para gerações futuras” – de Justiça e profissionalismo.
Leia na íntegra a 1ª parte da entrevista com o promotor Francisco Cembranelli
Última Instância – Por que o caso chamou tanta atenção?
Francisco Cembranelli - O caso trazia uma série de ingredientes que chamavam a atenção das pessoas. A própria singularidade do crime, a maneira como aconteceu, as personagens. Havia ali uma questão amorosa envolvida, eram duas Anas. Havia uma pessoa que foi casado com uma, acabou se separando, tentou reconstruir a vida; uma filha no meio de todas essas pessoas... Uma questão complexa, conturbada; uma relação difícil entre todos; e opiniões as mais diversas e as mais contraditórias possíveis, o que fazia com que o interesse popular permanecesse, cada um dava a sua opinião, cada um tinha um prognóstico para o caso Isabella.
Não foi um crime que costumeiramente se vê nas ruas. O mistério que o cercava, porque nós não tínhamos testemunhas,não tínhamos confissão. Talvez, se houvesse a confissão logo nos primeiros dias, o interesse popular iria cair. Ficou um suspense, com as pessoas acompanhando como se fosse uma novela. Os capítulos eram divulgados a cada dia pela mídia brasileira. Cada perícia era exaustivamente divulgada. No dia seguinte, um depoimento; uma manifestação; uma segunda perícia; uma contra perícia... As pessoas acabavam acompanhando para ver o desfecho final, que acabou acontecendo só no julgamento, dois anos depois.. É como na televisão, você nunca sabe o que vai acontecer no fim ou num filme, em que você acompanha sem saber o final da história, ou um livro. Adquiriu esses contornos.
É uma soma de valores que fez com que isso ficasse muito tempo na mídia e acabasse despertando tanta atenção assim. Mas, se não tivesse divulgação nenhuma, eu teria atuado da mesma maneira no processo e acredito que teria chegado ao mesmo resultado.
Última Instância - O senhor acha que houve um exagero, um sensacionalismo excessivo, por parte da imprensa no caso?
Cembranelli - Não, houve uma concorrência muito forte. Todos queriam dar a notícia, porque sentiram que havia o interesse popular. As pessoas acabam assistindo e isso é que dita o ritmo das apresentações. Claro que se as pessoas desligassem os seus televisores no momento em que se falasse sobre o caso Isabella, certamente não teria essa correria toda que houve. Mas aconteceu exatamente o inverso.
Sou contra tolher a liberdade de informação. Acho que a imprensa tem liberdade total para divulgação e deve ter, mas com critérios. Ela deve seguir uma linha mais coerente, para evitar que isso conturbe a opinião pública, porque aquilo que ele está transmitindo, o cidadão do outro lado vai absorver e, às vezes, tudo é bastante distante da realidade.
Última Instância – Para o senhor, qual a melhor maneira para se lidar com a imprensa nessas situações?
Cembranelli - Não é fácil, porque há um universo muito grande envolvido nesses casos. Você não está lidando com dois ou três jornalistas. Me recordo de entrevistas que aconteceram aqui com 100 jornalistas. Às vezes eu via a mesma frase dita por mim sendo reproduzida de maneira diferente por dois veículos de comunicação concorrentes. Não é uma tarefa simples, não, mas nós temos que vencer esses desafios e temos que impor respeito também, porque a imprensa vai respeitar o seu trabalho de acordo com o seu comportamento no processo. Essa conquista também é difícil e não é para muitos, poucas pessoas conseguem lidar com isso de uma maneira profissional. Alguns acabam extrapolando, falam demais, falam de menos, passam informações bombásticas em momentos inadequados e aí tudo cresce e a credibilidade, que é bastante importante preservar, escoa pelo ralo.
Última Instância - O senhor acredita que casos que são mais visados pela mídia, como o da Isabella e o do goleiro Bruno ganham a prioridade da Justiça?
Cembranelli - Não acredito que ganhe prioridade. Acredito que quando o processo corre com os réus presos corre com uma celeridade maior, porque a lei estabelece determinados prazos para o término da instrução criminal. No caso Isabella, não teve preferência em relação a outros processos. Nós tivemos apresentação de todas as testemunhas, pelo menos as minhas, em dois dias, porque eram 16 testemunhas e nenhuma delas faltou. A defesa também teve a sua oportunidade e o Judiciário, imediatamente, partiu para uma decisão. O que acontece, naturalmente, nos processos.
O recurso mesmo de apelação [do casal Nardoni], que foi impetrado em março, o advogado apresentou razões em julho, eu já contrariei. Foi [levado] ao tribunal e ainda não foi julgado. Em todos os processos de réu preso, uma apelação, para ir ao tribunal, ser julgada e voltar, demora de oito meses a um ano. Nós estamos indo para sete, oito meses, está dentro do prazo, não foi dado preferência. E é uma apelação importante, que ataca exatamente o resultado do julgamento.
Última Instância - No final do julgamento, o advogado Roberto Podval fez uma pergunta aos jurados, que agora repetimos: “Será que chegaríamos ao mesmo resultado [a condenação dos réus] se a cobertura da imprensa tivesse sido diferente?”
Cembranelli - Acredito que sim. Isso me parece mais uma desculpa dada pela defesa para justificar o resultado. Ele procura creditar a condenação dos réus a uma pressão imposta pela mídia. Eu costumo dizer que a mídia não cria provas. As provas que foram divulgadas em dois anos de processo existem de fato, elas estão encartadas nos autos, foram objeto de exibição no dia de julgamento, naqueles cinco dias. Seria muito simplório e bastante limitado dizer que o jurado, que acompanhou com atenção os cinco dias de julgamento, já chegou com voto pronto porque a mídia fez pressão.
Ora! A defesa, em vários momentos do processo, teve muito mais espaço que a acusação. Quem não se lembra da entrevista dada pelo casal [Nardoni] ao Fantástico [TV Globo],durante 40 minutos, sem a participação alguma da promotoria? Lá o casal teve a oportunidade de dar a sua versão, de responder as perguntas que quis, no seu próprio meio, na sua própria casa. Eles puderam chorar, falar dos outros filhos, invocar tudo o que quiseram e não houve participação alguma da acusação. Ali foi dado todo um tempo para a defesa, sem que houvesse o que os advogados chamam de ‘paridade de armas’.
Quando foi mostrado o apartamento, pelo mesmo programa Fantástico, eu também não participei dessa reportagem; o advogado falou durante 15 minutos. O apartamento foi todo mostrado, fotografias e tal, família apareceu; a acusação não fez parte. Quando aquele cidadão veio lá da Paraíba[referindo-se ao perito alagoano George Sanguinetti], o contra perito, ele foi aos programas de televisão, muitos me chamaram e eu, claro, não aceitei nenhum tipo de bate-boca e ele foi sozinho. Lembro-me de programa de televisão em que ele participou sozinho, pôde falar o que bem entendeu.
Que espécie de “desculpa” é essa de que a acusação foi abraçada pela mídia, que levou adiante a sua versão para que a sociedade formasse um pré-julgamento muito antes do julgamento propriamente dito? Ora, a defesa teve tanto tempo quanto eu. Eu me lembro de vários programas que eu fui, a defesa foi também e teve o mesmo tempo para contrariar. A sociedade foi amplamente informada, em cinco dias de julgamento democrático. Lá eles tiveram condições de fazer perguntas e formar sua opinião e decidir. O júri é assim, em qualquer lugar do mundo. Isso me parece mais desculpa de quem perdeu.
Última Instância - O senhor falou da questão das provas. No julgamento, o senhor disse que o caso Isabella seria um marco no uso de tecnologia nas investigações criminais. O senhor acha que houve investimento, que isso vai de fato acontecer?
Cembranelli - Isso tem acontecido. Eu tenho ido para vários lugares do Brasil, recebido convites para participar de congressos, eventos seminários, nos Ministérios Públicos dos Estados e os colegas têm me informado que realmente houve um investimento maior. Inclusive os peritos do caso Isabella foram para esses lugares para transmitir a tecnologia empregada e os governantes, sensíveis a isso, passaram a investir.
Produtos de alta tecnologia, empregados no caso Isabella, já são comuns em vários Estados, não em quantidade suficiente para aplicação em massa, mas esses recursos que eram antes desconhecidos, hoje já são de domínio pleno de todos os institutos de Polícia Científica do Brasil. Pelo menos isso o caso Isabella trouxe de positivo: a apresentação para todos esses peritos da tecnologia mais avançada e de como isso pode nos ajudar. Não temos ainda um modelo ideal, nem em São Paulo; mas já começamos a visualizar uma outra maneira de buscar prova pericial, de modo a condenar aqueles que infringem a lei.
Última Instância - Como o senhor acha que no futuro vão se referir ao caso Isabella? O que esse caso representou para o Brasil?
Cembranelli - Acredito que nunca existiu, até o momento, nenhum caso de repercussão tão grande quanto esse. Se você vasculhar a história, vai encontrar casos famosos, casos importantes, casos que foram divulgados na época. Acontece que nós não tínhamos um mundo globalizado e conectado como temos hoje. A velocidade da informação hoje atinge todo o mundo. Se você fosse na década de 60 e pegasse o crime mais famoso aqui em São Paulo, certamente no Nordeste nunca ninguém teria ouvido falar. Por quê? Porque a informação não corria. Só a comunidade jurídica mantinha a atenção.
Fizeram uma pesquisa na Internet sobre o caso Isabella e perguntaram para os brasileiros de todos os locais se conheciam o caso Isabella e 98% das pessoas afirmaram que conheciam. Então é claro que ele se tornou o maior caso de repercussão na história jurídica do Brasil e se fixou na história. Falo isso não para querer me engrandecer, falo apenas para constatar uma realidade, não há como fugir. Daqui a 100 anos provavelmente os livros vão se referir ao caso Isabella e vão falar sobre tudo que aconteceu. Que ele sirva de exemplo para as novas gerações; para as pessoas que duvidam de uma Justiça séria; para aqueles que estejam pensando em fazer oceanografia ou direito – talvez nesse momento eles possam optar pelo direito. Que usem o bom exemplo de todos os profissionais, até dos advogados, e pessoas que fizeram frente à acusação, que tiveram um comportamento decente.
Várias pessoas já me pararam nas ruas pra dizer que decidiram fazer direito por conta do meu trabalho no júri. Fico feliz com isso, por ter influenciado positivamente essas pessoas. Talvez o maior legado do caso Isabella seja o bom exemplo para gerações futuras. Quem sabe os meus filhos não se lembrem desse caso quando puderem compreender melhor o que aconteceu e usem isso para suas carreiras e vidas profissionais? E assim por diante... Talvez seja a maior recompensa que eu possa ter tido.
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